quarta-feira, 10 de julho de 2019

O Refúgio Sagrado

Seguia em minha montaria a tortuosa e extremamente perigosa estrada de Derbyshire para chegar a cidade do mesmo nome, na região Oriental da Inglaterra. Estávamos no rigoroso inverno de 1890, ano em que as plantações em toda Inglaterra foram seriamente castigadas. Me dirigia a Clínica Psiquiátrica Real onde meus préstimos como esculápio seria de grande valia visto quer havia um surto de febre tifoide naquela região e certamente no mundo dos enfermos e necessitados minha aparência bem incomum não seria empecilho para trabalho humanitário. Tenho meus particulares motivos para ir a um lugar tão distante para fazer a caridade, minha face não tem um agradável aspecto pois as cicatrizes deixadas pelas chamas durante o terrível incêndio que destruiu a capela da Aldeia de Kemble deixaram meu rosto e minhas mãos miseravelmente deformadas. Embora evite os lugares com aglomerações de pessoas devo me acostumar com a reação delas, olhando-me como a um animal em um circo de horrores. Sem falar certamente, nas terríveis lembranças daqueles assombrosos acontecimentos. Mas a noite estava chegando e o céu em um breu assustador,encobria as nervosas ondas do rio Derwent que se precipitam nos rochedos ao longo de toda estrada tocadas pelo vento que a cada momento parecia ficar cada vez mais forte. O seu aspeto inspirou-me verdadeiro terror e ao parar meu cavalo senti um forte desejo de voltar atrás. No entanto, imediatamente me envergonhei da minha fraqueza e continuei, saltei de minha montaria e procurei proteção na murada de pedras, mas era praticamente inútil. Naquele momento era necessário encontrar um abrigo o mais rápido possível pois uma tempestade estava por chegar com toda sua fúria. Raios precipitavam-se furiosamente como flechas de fogo no céu. Olhei pela borda do penhasco e vi uma vasta extensão de mar cuja cor escura e o vento que bramava violentamente me recordou imediatamente o quadro de Pierre August intitulada ``A Tempestade´´, mas verdade era a morte que aproximava-se e lançava sua negra sombra sobre tudo. Sem dúvida era o panorama mais espantosamente desolador e assustador que a imaginação humana poderia por ventura conceber, o ruído mais forte do vendaval que abraçava a muralha de pedras soava como um uivo de uma criatura diabolicamente feroz e assustadora. Fui fustigado pela fúria indomável do vento que fez minha montaria retornar em desabalada carreira. Ao meu lado um imenso precipício de granito luzidio e negro, por nada do mundo eu deveria me aventurar próximo a borda pois seria sugado pela força do vendaval, eu estava tão profundamente confuso e agitado pela situação perigosa daquele momento que me deixei cair a todo o comprimento no solo e encostei-me a alguns arbustos pensando ser ali meu derradeiro a minutos quando a frente avistei uma construção a frente, pensei imediatamente fugir daquela terrível tempestade. Uma luz anunciava que próximo estava de algum abrigo, ou, pelo menos, assim me parecia. Ao aproximar-me constatei que a construção era como um velho castelo medieval mas em menores proporções, sua entrada era em forma de arco que cobria toda estrada, sobre ele uma abóboda com vitros coloridos, parecia ter dois andares sobre o majestoso arco e três pequenas janelas onde uma delas, com uma pequena luz deveria ser o indício que encontraria um local seguro a um viajante apavorado. Toda a estrutura era com enormes pedras que cobria toda estrada tornando impossível seguir viagem sem por ali passar, como se a túnel fossemos obrigados a passar para entrar em Derbyshire. Iniciava ali a aventura mais extraordinária que jamais ouvira relatar algum ser mortal, ou pelo menos tão extraordinária que homem algum pôde a ela contar e as cinco horas seguintes que passei naquele refúgio despedaçaram-me a alma e despertaram lembranças e traumas a muito adormecidos no fundo do meu ser. Aproximei-me do inusitado local enquanto toda estrada tremia em sua base e o rochedo mexia-se perigosamente. Deitei-me de bruços num excesso de agitação nervosa e encostei-me a parede de pedras junto ao portal de presumi ser a entrada daquela majestosa construção, mas meu pavor era tamanho que já não bastava a vontade de viver, era imperioso rogar por uma ajuda que esteja além do que possa ver. Lembrei-me que no domingo da Sexagésima de 1885, o padre Antônio Vieira,de Portugal, presenteou-me com o livro Semen est verbum Dei (S. Lucas, VIII, 2) ``A semente é a palavra de Deus´´, então de Joelhos ao chão e com as vestes completamente encharcadas pela forte chuva retirei de meu alforje o livro e cruzei os braços segurando-o fortemente contra o peito, coloquei meu rosto quase ao chão como a implorar ao senhor um perdão imperioso, pois não queria perecer naquela tempestade como um excruciante pecador. Permaneci não sei dizer quanto tempo a suplicar pela minha bida até que através de uma pequena janela um homem vendo meu intenso desespero abriu a porta que dava entrada a estranha construção e aproximou-se, mesmo com o vento arrastando quase tudo que encontrava pela frente o homem parecia não temer a fúria dos ventos e chagando até onde eu estava ergueu-me pelo braço para levar-me até a porta, carregou-me para dentro e tratou de fechar rapidamente a porta, então pude ver melhor quem havia saído em meio a uma tempestade para salvar um desconhecido. Vestia-se como a um nobre aristocrata Londrino, com uma vasta capa escura e na mão portava uma bengala com cabo de prata em formato de cabeça de um cão. Ninguém poderia imaginar a mescla de sentimentos que me invadiam naquele momento entre a alegria e o espanto, surpresa quando me sentou a uma poltrona próxima a uma das janelas e serviu-me uma taça de vinho. Lá fora a tempestade bramia furiosamente mas meu anfitrião não mostrava qualquer preocupação. Enquanto eu ainda aturdido bebia o vinho o homem abriu a porta lateral de uma estante e pegou algumas roupas colocando-as no braço da poltrona. – Troque suas roupas molhadas no quarto ao lado. Disse ele ---Lá também encontrará sapatos secos. Ele parecia não se importar, ou, pelo menos, não deixava transparecer que notara minha aparência horrenda devido as queimaduras. Retornei a sala já com roupas secas e tentando ficar calmo, mas mantinha minha cabeça baixa, o que para mim já era de costume. De dentro do castelo se podia observar as águas em convulsões frenéticas, ofegando, borbulhando, assobiando, voltando-se em gigantescos e inumeráveis turbilhões, que certamente buscavam alcançar as portas de meu refúgio. Permaneci sentado a poltrona com as vestes secas mas ainda um sentimento de pânico dominava por completo meu corpo. Gelava-me o sangue só em pensar no perigo que passei. Observei que a sala era apenas uma das alas da construção e que as janelas ocupavam assim três lados do estranho refúgio, a porta por onde fui conduzido a entrar estava situada no quarto lado e havia pelo menos seis janelas. A mesa achava-se esplendidamente servida para um banquete, mas não havia mais ninguém na casa. Estava coberta de louça lisa e sobrecarregada de inúmeras espécies de iguarias, jarras com vinho, pequenos lampiões pendurados nas laterais da sala faziam uma fraca a alentante iluminação. Observei sobre uma pequena mesa um Quinetoscópio, uma caixa com um pequeno visor na parte superior inventada por Willian Kennedy, com a ajuda de Sir. Thomas Edison, neste inovador aparelho era possível reproduzir imagens em movimento através da gravação em uma película. Mas tudo para mim era muito vago, mas aparentemente seguro. Rompendo a diafanante teia de algum sonho era uma visão de extraordinária magnificência, uma manifestação de sofisticação e nobreza em meio aos caos. Após alguns cálices de vinho em uma taça de prata genuína com uma cruz templário gravada na parte externa e uma esplêndida refeição o estranho anfitrião identificou-se como sendo o Almirante Berthmor da real marinha inglesa, mas preferia de ser chamado pelo título herdado de sua família, Lorde Berthmor. Durante o decorrer da noite, enquanto lá fora a impiedosa tempestade jogava suas águas nos coloridos vidros das pequenas janelas fui relatando, incentivado pelo Lorde, detalhe das atrocidades por mim cometidas no passado, e a calma e a altivez,com que lorde Berthmor ouvia minhas palavras me deixava um pouco desconfortado, permanecia sentado em uma poltrona frente a mim apenas escutando, em nada dizer. – O Lorde tem algo a dizer? Perguntei --- Prejudica minha visão examinar o acontecido com fato isolado, pois examinando assim enxergarei um ou dois pontos somente, e ao fazê-lo perco de vista uma compreensão do todo, continue sua narrativa sr. Lawford. Respondeu ele. Ao confidenciar episódios de meu obscuro passado ao estranho Lorde sentia-me ao mesmo tempo desafogado de meus remorsos, sentia-me mais leve. Uma conversa inesperada, com um alguém desconhecido e entre trovões e relâmpagos que clareavam o ambiente trouxe a lembrança de fatos que devo admitir, nada tenho a orgulhar-me em deles ter participado. Mas afinal que teria eu a perder em contar algo a homem que talvez jamais volte e ver-me. – Aproveite o momento Lawford! Disse o Lorde enquanto apreciava calmamente seu vinho.---- Nunca sabemos quem mais esta a escutar nossa conversa. arrependa-se sinceramente de seus pecados e quem sabe ao sair desta casa seguindo seu caminho poderás estar perdoado de seus mais terríveis atos, sua alma livre de todas as culpas, e ainda suas cicatrizes no corpo e no espírito curadas. E sem mesmo entender o interesse de Berthmor por minhas irrelevantes aventuras fui repassando uma a umas minhas nefastas atitudes assegurando ao Lorde delas estar arrependido. Já quase ao amanhecer, quando a tempestade já havia passado e deixado como rastro apenas um imenso charco na estrada, Berthmor, creio que já exausto de ouvir minha confissão e lamúrias, ergueu-se de sua poltrona e colocou sua mão em meu ombro. – Meu nobre inesperado amigo, sua parada aqui não foi em vão pois limpaste teu coração, tua alma e teu espírito, e após descansares iras também limpar teu corpo. Amanhã certamente entenderas que nada acontece por acaso. Dizendo isto me alcançou uma almofada que havia sobre o assento de sua cadeira. – Durma um pouco e amanhã serás um novo homem, mas lembre-se, siga em frente, complete sua jornada e não retornes por esta estrada. E assim o fiz, recostando-me a poltrona que estava sentado me deixei dominar pelo cansaço e pelo excesso de vinho ingerido durante a conversa. Sem dar maior importância ao comentário feito por ele a respeito de não voltar mais pela mesma estrada e somente seguir em frente. Berthmor fechou as cortinas das pequenas janelas e retirou-se do salão, sua aparente calma me deixara apreensivo no começo mas agora já a julgava bastante normal para quem ali vivia a muito tempo. Ao acordar o sol já havia assumido seu lugar e brilhava intensamente sobre os rochedos, a tempestade tinha se dissipado. Caminhei até a janela para abri-la e meu espanto deixou-me perplexo pois ao segurar o ferrolho da fechadura para abri-la notei que minhas mãos, que até então estavam deformadas pelo fogo eram novamente normais, sem o menor sinal de cicatrizes, imediatamente fui até a mesa da sala e ergui o cálice de prata ao qual degustei vinho durante boa parte da noite e vi refletido minha face, perfeita como se a um milagre fosse eu submetido. Todas as cicatrizes sumiram como em um passe de mágica. Impossível descrever a felicidade que tomou conta de meu corpo que outrora tremia de pavor. Agora entendia porque não podia mais voltar atrás, pois naquela tempestuosa noite, ao redimir-me de meus pecados, do meu passado, recebi a graça de voltar a ser uma criatura de aparência normal. Deus fez o homem a sua imagem e semelhança, deveria eu agraciado pelo acontecido, seguir meu caminho até a Clínica Psiquiátrica Real, meu primeiro destino e lá dedicar-me a fazer a obra do meu Criador. Abri a porta do refúgio sagrado e encontrei minha montaria atrelada a um dos pilares da construção, montei imediatamente e segui meu caminho, eu tinha uma missão a cumprir. Após alguns quilômetros percebi que fui egoísta em sair da casa sem agradecer ao homem que tornou possível minha transformação de uma monstrosidade para um homem normal, resolvi retornar a dizer-me grato por tudo. E para meu espanto, ao retornar ao local onde tudo aconteceu, nada encontrei, da majestosa construção nenhum sinal.

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