quarta-feira, 23 de outubro de 2019
O Assassino de Cameron
A Inglaterra em 1906, assim como hoje, é cheia de lugares com histórias que fazem-nos pensar, mas poucas se comparam ao singular bairro de Holloway ao norte de Londres. Este aparentemente pacífico local possuí histórias tão ricas quanto um tesouro, mas muitas destas histórias escondem terríveis segredos. Mesmo sendo um bairro de atividades rurais ele tinha em seus prédios uma legítima arquitetura vitoriana, os nobres locais deliciavam-se com o surgimento da cinemateca Odeon localizada no Park Tufnell. Era também onde residia seu cidadão mais ilustre, o escritor e poeta Eduard Lear. Um local de muitos atrativos mas também de muitos mistérios.
Henrick Dupra era americano e mantinha uma clínica nos fundos de sua casa na Totman 1023, uma charmosa rua com chalés brancos e
belos jardins, o sr. Dupra era um morador bastante conhecido na comunidade, um conceituado médico homeopata que parece ter levado muito a sério quando ouviu a frase ”até que a morte nos separe” pois segundo a Polícia local o jovem médico abriu o crânio de sua esposa Edna Dupra com um golpe de machado. Edna era uma cantora lírica que
se apresentava como Edna Bella. E infelizmente o” felizes para
sempre, infelizmente não aconteceu para este casal.
Alguns casamentos são longos e outros nem tanto, mas todos repletos de promessas. O problema é que aqueles em quem confiamos podem
ser os piores traidores, confiar na pessoa errada pode ser o último e fatal
erro.
Após o cruel assassinato o médico teria ocultado o corpo de Edna no porão de seu chalé e fugido da cidade embarcando em um navio comercial chamado Braduck. Segundo os boatos que correm mais rápido que o rio que
corta Londres ao meio, ele estaria acompanhado de sua amante Rose de Levingne, uma garçonete em uma taverna nos arredores da cidade. Para a Polícia, que já conhecia a garçonete, aquela senhorita Levingne
era igual a uma maçã envenenada, linda por fora mas com um conteúdo mortal.
Com o sumiço repentino do casal os vizinhos estranharam as janelas sempre fechadas e chamaram a Polícia local. Após uma testemunha ter afirmado ver o médico nas proximidades do cais londrino na noite do assassinato, o inspetor Thormann ficou como responsável pela investigação do caso e tomou providências necessárias e os dois amantes foram capturados dias depois em Quebec, no Canadá, enquanto tentavam passar através
do rio Sant Lorence.
Henrick foi levado a prisão estadual de Cameron, no condado americano de Moure, Carolina do Norte, sua cidade natal onde aguardaria julgamento.
Sua encantadora amante Rose foi enviada de volta a Inglaterra onde
seria julgada pela corte inglesa. Mas ainda não havia provas do seu envolvimento no assassinato de Edna.
Eu e o inspetor Thormann decidimos ir até Cameron para interrogar Henrick e saber o motivo do brutal assassinato de sua mulher e até
onde a garçonete estava envolvida.
O inspetor Thormann estava em seu último ano de trabalho na Scotland Yard pois sua aposentadoria esta por chegar a qualquer momento, eu já havia completado setenta e dois anos e sentia-me bastante cansado, mas não poderia recusar o convite de um amigo tão chegado como o inspetor. Então partimos para aquela que poderia ser nossa última investigaçao oficial.
Depois de uma longa viagem chegamos já ao entardecer e a escura noite adensava rapidamente. Fomos diretamente a Goodmann Street
1007, onde ficava o pequeno hotel Dewberry,se fazia necessário um descaço e um bom banho quente. Dewberry era um hotel simples mas com conforto suficiente para passarmos a noite depois de uma fatigante viagem. Pretendíamos sair pela manhã até a distante Burke Prision na estrada Carthage Roout para o interrogatório com o sr. Dupra.
A partir daquela manhã fomos levados por um caminho bizarro e bastante confuso, pois surgiram dúvidas e muitas especulações, mas pouca cosa foi realmente esclarecida.
Já estava amanhecendo quando saímos no dia seguinte e após algum tempo viajando em um coche cedido pelo hotel desviamo-nos da estrada principal e adentramos em um estreito caminho secundário, que ao fim de
uma meia hora se embrenhava em um bosque espesso que cobria toda área onde os olhos alcançavam. Percorremos certamente cerca de duas milhas através dos atalhos que já se tornaram úmidos e por vezes escuros,e encobertos por imensas árvores com seus troncos repletos de uma ramagem verde, podíamos sentir a fétida lama pisoteada pelos cavalos.
Após algum tempo surgiu ao longe a penitenciária, estava situada em uma clareira e demonstrava ser uma construção muito antiga, muito prejudicada pela ação do tempo e a julgar pela sua aparência de vetustez e abandono a muito não recebia nenhum reparo em sua estrutura. Não havia fazendas no entorno, nenhum tipo de plantio, nem sequer o menor sinal de alguma atividade ao redor, tampouco o latido de um cão sugerindo que aquele
disforme local era habitado por humanos.
Mesmo sendo ainda dia, creio eu que era próximo de meio dia, aquele fétido local tinha uma bruma escura como se uma sombra nimbosa encobrisse tudo. Um sentimento aflitivo e angustiante se apossava rapidamente de nós. Thormann usou o chicote para apressar a marcha dos cavalos, era imperativo sairmos daquele terrífico caminho.
Um local dantesco e medonho ao extremo. As celas tinam suas pesadas portas de ferro diretamente voltadas para o pátio e somente uma
pequena abertura com grades permitia a entrada de um minúsculo facho de
luz. Toda a construção era com enormes blocos de pedras e no interior da cela o mau cheiro era quase insuportável além de ratos que circulavam livremente por toda parte. No centro do imenso pátio havia uma enorme guilhotina montada, era a visão mórbida e assustadora da justiça dos homens.
Dentro de uma cela fétida o assassino de Cameron, como ficou conhecido já estava a nossa espera. Fiquei surpreso ao ver que Dupra era um homem franzino, muito magro e imediatamente questionei com Thormann se teria
ele realmente força suficiente para desferir tão pesado golpe que levou
sua esposa a morte. O rosto extremamente pálido, os cabelos grisalhos e longos totalmente desalinhados. Seus olhos circundados por profundas olheiras deixavam evidente que pensamentos terríveis lhe haviam tirado o sono. Dupra afirmava nada ter a ver com a morte de Edna e somente queria deixá-la devido a pouca atenção que ela dedicava a ele e por brigarem diariamente por ela não suportar o seu vício com a bebida e jogos de azar, afirmou que jamais a mataria. Ele realmente pretendia partir com sua
nova companheira e dois dias antes da morte de sua esposa havia passado todos os seus bens para o nome de Rose de Levigne.
Afirmou ainda não ter motivos para querer a morte de sua esposa pois nada mais pertencia a ela a não ser a casa onde moravam e que ele
deixará no nome da falecida esposa.
Segundo dizia o filósofo Renê Descartes, a paixão frequentemente nos faz acreditar que algumas coisas são muito melhores e desejáveis do que realmente são, então quando tivermos tido muito trabalho para
adquiri-la e no caminho tivermos perdido a oportunidade de possuir bens mais genuínos, sua posse nos mostra seus defeitos e daí vem a
insatisfação o arrependimento e remorso. E creio eu, este pensamento tem muito a ver com o que esta acontecendo com o sr. Dupra, que aos sessenta anos entregou seu coração e seus bens a jovem garçonete.
Era necessário voltar ao local do crime pois precisávamos de indícios que pudessem auxiliar na elucidação deste caso que a princípio parecia tão lógico e agora já era um completo mistério.
Retornamos a Londres no dia seguinte e após um breve descanso saímos em busca de respostas. Ao chegarmos a casa dos Dupra já era quase noite, adentramos a casa e fomos de imediato a sala de jantar onde Thormann tratou de acender as velas do suntuoso lustre dourado que pendia sobre a pesada mesa de madeira escura, as inúmeras tapeçarias que ornamentavam as paredes ondulavam ao sopro de uma leve brisa de final de tarde vindas dos estreitos e altos corredores do chalé. As velas tremeluziam e esfumavam ao serem tocadas pelo vento. Todos os cantos do belíssimo chalé foram
vasculhados mas na verdade não tínhamos a certeza do que estávamos procurando, e nada que pudesse despertar uma maior atenção foi encontrado, a casa estava toda arrumada, sem desordem, nem rastros ou qualquer coisa que pudesse levar a algum ponto de investigação. Nossa infrutífera busca não levou-nos a lugar algum, o Sr.
Dupra ainda era o principal suspeito.
Talvez pela nossa experiência adquirida em outros casos, não estávamos totalmente convencidos da culpa de Henrich pela morte da esposa e surgiam em nossa mente uma série de medidas que ao final eram desapropriadas aos nossos objetivos e afastavam-nos cada vez mais da solução do mistério.
Seria o homeopata realmente inocente?
E se fosse inocente tudo seria ainda mais complicado, pois quem seria então o culpado por um crime tão brutal?
E qual o benefício disso para o assassino?
O caso tornou-se público e todos queriam respostas mas nós também só tínhamos perguntas.
Em uma tarde sairmos do distrito policial fomos abordados por um homem velho que empurrava uma carroça de quinquilharias. Era um mercador de nome Abdul que circulava pela cidade vendendo tapetes, caixas de ébano, bolas de vidro colorido, imagens das mais variadas origens e uma infinidade de outras extravagâncias. Segundo o que disse o velho mercador um homem de cabelos claros bastante forte com aproximadamente 1,80 de altura e usando longas botas de borracha, como as botas usadas em pesqueiros e
embarcações, saiu rapidamente da casa dos Dupra no dia do crime.
Abdul disse que o homem estava muito apressado e subiu em um coche que estava a sua espera um pouco mais abaixo na mesma rua e foi em direção as docas.
Imediatamente o inspetor ordenou aos policias que rumassem para o porto para buscar mais informações sobre o navio Braduck, onde Dupra e sua amante foram pegos. Porem os marinheiros pouco sabiam ou não queriam falar. Mas uma informação que nos chegou através do dono de um bar da zona portuária caiu como uma luz na nossa ainda nebulosa investigação. O capitão do navio Braduck, Kriss, tinha uma irmã, e para nossa surpresa descobrimos que ela trabalhava em uma taverna fora da cidade. Não foi necessário muito esforço para ligarmos os pontos, era um quase
perfeito crime, para livrar-se de Edna, a esposa indesejada e também do amante Henrick que seria considerado culpado e condenado a morte, ou na melhor das hipóteses uma prisão perpétua, se é que dá para considerar uma prisão perpétua como melhor hipótese.
Parece que o mortal triangulo amoroso esta se transformando em um surpreendente quadrado. O nome do capitão do Braduck foi
facilmente descoberto por Thormann e não por coincidência tinha Kriss o mesmo sobrenome de Rose Levigne. Isto ficou ainda mais claro porque Henrick contou-nos quando de nossa visita a prisão que foi sua namorada que providenciou tudo para a fuga e que após esperar por quase uma hora no cais emfim ela chegou acompanhada do capitão.
Tudo parecia sair como planejado, porém os planos de Rose e de seu irmão não incluíam Henrich.
Novamente me veio a mente a mesma pergunta:
Quem tiraria alguma vantagem com a morte de Edna e a
condenação de Henrick?
Mas tudo era apenas suposições e não havia provas, a
descrição feita por Abdul batia com dezenas de marinheiros do porto de
Londres. E os dias foram passando, semanas, o caso não era mais o principal assunto dos mora/dores do local. Henrick estava por ser condenado por um crime que segundo ele não havia cometido. E naquele momento eu e Thormann também tínhamos dúvidas quanto ao autor do assassinato.
O tempo passou e a polícia acabou liberando Rose por falta de
provas do seu envolvimento com a morte de Edna. Seu irmão Kriss deixou o barco em que trabalhava em um porto canadense e não foi mais visto. Um ano depois do crime,Dupra foi julgado e condenado a prisão perpétua e trabalhos forçados pela morte de sua esposa Edna Dupra.
Após ter novamente sua liberdade Rose não retornou a taverna. Em 1862 seu irmão Kriss, agora usando o nome de Debruhá foi encontrado morto em um porto em Londres esfaqueado em frente ao armazém Ocean Bleu.
* A injustiça que se faz a um homem é uma ameaça que se faz a todos.
– Barão de Montesquieu - 1689/1755
segunda-feira, 23 de setembro de 2019
Assassinato no Cais
Estávamos em 1862, o cais londrino era entre muitos lugares da cidade um dos pontos mais frequentados durante a noite. Suas tavernas e clubes noturnos traziam diversão e prazer a quem por ali passasse.
Mademoiselle Nina era uma dessas lindas e encantadoras jovens que por descuido do destino nascera em uma família muito pobre. De origem polonesa, aos dezoito anos foi parar no Club Le Chat Blanc, uma das mais finas e frequentadas casa noturna da cidade.
Entre aqueles muitos que tinham em Nina sua principal razão para frequentar o Le Chat Blanc estava o Sr. Debruhá, um homem grisalho, alto, na casa dos sessenta anos e muito rico. Ninguém sabia ao certo de onde ele viera e nem tampouco a origem de sua fortuna. Se dizia agnóstico, ateu, herege, ou como você queiram chamar aqueles que descreem de tudo a não ser em seu próprio dinheiro. Sarcástico ao extremo dedicou boa parte da vida a cultivar
inimizades graças a sua atitude arrogante, e sentia prazer ao despejar veneno a granel com seus comentários.
Tinha boa aparência, o nariz reto, sorriso irônico e uma testa larga de onde surgia o cabelo comprido penteado para trás passando por trás das orelhas e indo até o colarinho do casaco em veludo. Usava bigode mas sem
costeletas, carregava no bolso esquerdo de seu colete um fino relógio de
ouro com um brasão que se julgava ser de sua família. Sempre segurava com maestria uma bengala de madeira escura digna dos mais nobres cavalheiros londrinos, com o cabo também coberto do mais puro ouro. Era sem dúvida um símbolo da nobreza londrina.
Naquela fria noite de inverno não foi diferente, Debruhá bebia ao lado de Nina e fazia questão de ser notado por todos enquanto sorria ao ver sua acompanhante ajoelhar a seus pés para que moedas fossem por ele jogadas no decote de colorido vestido.
Porem aquela seria a noite fatal para o presunçoso fanfarrão. Após frequentar os aposentos da jovem por um longo tempo, o homem desceu ao salão para mais uma taça de champanhe, enquanto Nina sentava-se ao seu lado no canto da sala. Da porta de entrada do salão um homem acenou discretamente para a jovem que apenas balançou a cabeça afirmativamente.
O homem a porta chamava-se Kominski e era o irmão mais velho de Nina. Um marinheiro bêbado que circulava pelo porto a noite a procura de alguém para lhe pagar uma bebida e muitas vezes detido pela policia londrina por pequenos furtos em armazéns do porto.
A noite transcorreu como todas as outras, muita músicas, damas encantadoras circulando pelo salão e cavalheiros apaixonadamente embriagados deixavam suas moedas de ouro caírem nos amplos degotes de suas acompanhantes.
Já passava de três da manhã quando Debruhá saiu a porta do Le Chat Blanc encaminhando-se até onde deveria estar sua carruagem, mas naquele horário as ruas do cais ficavam desertas e perigosas. Talvez o efeito das incontáveis taças de champanhe degustadas por Debruhá ou quem sabe sua arrogância fez com que o pomposo nobre penetrasse na nevoente noite sem qualquer preocupação. Kominski, que certamente já estrava a espreita á algum tempo esgueirou-se pelas sombras aguardou o melhor momento para executar seu propósito e vindo rapidamente em sentido contrario não hesitou em esbarrar bruscamente arremessando Debruhá contra a porta de um dos armazéns.
Não houve tempo para qualquer reação pois usando sua faca com grande habilidade encostou a lâmina ao pescoço do homem fazendo com que ficasse imobilizado. Certamente o susto devolveu a Debruhá o raciocínio rápido, e pensando ser um assalto tratou de meter as mãos nos bolsos do fino paletó e jogar suas moedas aos chão para que o ladrão as pegasse, mas infelizmente para ele aquilo não era um simples roubo. Kominski sorriu ironicamente vendo sua vítima transpirar de pavor e desferiu certeiro
golpe no pescoço do abonado boêmio. Sem qualquer tempo para reagir o homem foi escorregando de contas pelo paredão do armazém da companhia Ócean Bleu enquanto seu agressor introduzia cada vez mais fundo sua afiada lâmina.
Kominski retirou o relógio e recolheu as moedas jogadas ao chão, mas não havia dúvidas que o motivo da morte não era um simples roubo, toda a humilhação que era imposta aos que rodeavam o requintado cavalheiro fizeram dele pessoa não grata para muitos. Após alguns segundos o irmão da jovem Nina afastou-se do local e o ensanguentado e agora já não tão prepotente Debruhá permanecia jogado ao chão ao lado do armazém.
Uma agonia aguda, mortal parecia espraiar-se do rosto já ensanguentado tocando cada fibra de seu corpo e membros, que tremiam descontroladamente. Seu coração que antes batia intenso de repente pareceu estar a ponto de sair-lhe pela boca. Sentir o peito expandir em convulsões e em supremo desespero seus pulmões sorveram uma enorme e última golfada de ar. Com a expressão de total desespero soltou com um grito agudo, antes de ficar totalmente imóvel,caído sem vida em um escuro e sujo beco de Londres.
Circunstância que por si só já era suficientemente estranha para ficar retida
em minha mente. Eu já não visualizava nada exceto aquela cena, um
cenário extraordinário e fantasticamente terrível. Quem a minutos atrás zombava do seu semelhante agora ensopava suas roupas no próprio sangue em um cais imundo.
Mas o assombroso episódio ainda não havia acabado. Do alto do armazén onde me encontrava, quando olhava através do telhados via-se uma sombra gigantesca que parecia uma estranha fumaça umbrosa descendo na direção do corpo já sem vida. Certamente algo cujo significado era maligno, pois o cais envolto na escura noite emitia ruídos singulares, incompreensíveis entre os quais, gritos de tormento que jamais ouvira.
A maléfica sombra talvez enviada pelo próprio demônio cobriu Debruhá totalmente e sua imagem, como se a sair do próprio corpo esvaiu-se em meio a escura nuvem.
sábado, 10 de agosto de 2019
A Morte no Nevoeiro
Estávamos no inverno de 1857, após haver saído de Londres pela ferrovia National Rail até o Condado de Doncaster, dirigi-me até a estalagem próxima a estação onde tratei
Imediatamente de alugar um coche, pois meu destino era a pequena cidade de York, no
vale que levava o mesmo nome. Pelas informações que tinha coletado com alguns amigos que conheciam a região, antes de chagar ao Vale passaria ao lado do rio Ucre que acompanha por grande parte da estrada e chegaria a vila de Runswick, onde a peculiaridade são as casas perigosamente
construídas a beira das falésias(escarpas), misturando beleza e perigo ao local.
Todas as informações a mim passadas estavam extremamente precisas e o coche e seu condutor me
conduziam ao encontro do meu amigo e prestigiado médico psicanalista francês, dr. Frontin Lebranc. Segundo o que o médico me havia relatado por carta, meu nobre amigo teria desenvolvido métodos revolucionários para controle da mente, entre eles a Psicastenia, que utilizava a hipnose individual para controle da histeria.
Quanto mais distante ficávamos dos vilarejos locais mais a neblina cobria nosso caminho que agora já era através de uma estreita estrada entre os charcos e pântanos, certamente pouco usados
pelos agricultores nos cultivos da região. Pela janela do coche, que balançava fortemente
devido as condições inóspitas do trajeto a visão dos charcos entre o intenso nevoeiro que a tudo cobria no cair da noite era, sem dúvida, algo assustador.
Depois de atravessarmos os charcos e a névoa que permanece dia e noite no local, entre solavancos da carruagem chegamos ao vale de York, mesmo sendo já escuro devido ao adiantado da hora pois a noite já havia chegado não foi difícil ao cocheiro encontrar a estreita bifurcação que levava a cidade de York e ao Sanatório San Juan, meu destino final.
Meu velho amigo agora com 65 anos era diretor da clínica e ali desenvolvia métodos não muito
convencionais e até mesmos contestados para estudo da mente humana, pois além de eletrochoques e imersões em água extremamente gelada ainda incluíam seu conjunto de ferramentas incisões
cirúrgicas para estudo da massa encefálica e também o hipnotismo, motivo de minha visita já que a muito tempo alentava relevante interesse pela metodologia.
Enfim, após transpor o gigantesco portão de ferro que tinha em sua parte superior, distinta em letras grandes o nome da instituição, fui recebido pelo meu anfitrião e de imediato convidado a conhecer o incomum local.
Conheci o dr. Frontin em 1860, a dois anos, quando estive na Clínica Psiquiátrica Londrina para escrever uma matéria sobre o mundo dos alienados e posteriormente publica-lá no London Gazette. Já naquele período o médico declarava seu interesse em abrir sua própria clínica, onde ficaria mais a vontade para trabalhar com seus métodos, longe da correria londrina e dos críticos.
Ao adentrar no saguão da clínica já percebi que construção era muito antiga, toda em blocos de pedras escuras, era um local extremamente grande, com pilares grossos espalhados pelas laterias mas com apenas dois andares e sua ala principal ficava no térreo, sem quartos e com camas
Colocadas encostadas nas paredes laterais, pois não haviam naquele gigantesco salão paredes divisórias, alguns pacientes, que sempre estavam aos cuidados dos enfermeiros ou de algumas freiras que também auxiliavam no local, permaneciam amarrados as bordas de ferro de seus leitos, certamente para sua própria segurança e outros perambulavam como sonâmbulos pelo corredor central, talvez pelo efeito de alguns sedativos. Mas no geral aquele local era uma imagem depressiva, muito distante do que eu havia imaginado. Apenas poucas janelas deixavam o ar fluir para dentro do degradante local, impregnado com o cheiro pestilento de excrementos humanos. Devo admitir ser aquilo um hórrido cenário. A alienação humana exposta em seu grau mais assustador.
Seguimos nossa caminhada um tanto espantosa para mim até o fundo da extensa ala onde uma escadaria nos levaria aos porões. Naquele local permanecia em condições sub-humanas e
bestiais pacientes com elevado grau de demência, assassinos condenados a
morte, todos encarcerados em minúsculas jaulas aguardando o momento em que eram levados a condição de cobaias humanas e assim cruelmente fornecerem sua contribuição, mesmo que não seja espontânea e consciente para os experimentos de Frontin.
Ali tive consciência da total agonia que a mente humana pode chegar, o extremo da alienação incontrolável.
Gentilmente Frontin conduziu-me até onde seria meu quarto no andar superior da clínica, durante o trajeto dois pacientes despertaram minha atenção. Um deles já me era
conhecido, tratava-se de Robert Roster, um jovem de Swuan Valey, que após matar a
própria irmã Catarine Roster afirma ser atormentado pelo espírito da falecida, o
segundo caso é uma paciente chamada Charlott Dolms, uma jovem aparentando 25 anos que segundo o médico tem total liberdade para transitar pela ´clínica, segundo Frontin a jovem esta sempre a dançar usando um retalhado figurino de bailarina.
Passado dois dias da minha chegada mantinha minhas atenções concentradas na leitura das anotações sobre os experimentos em Psicastenia cedidas pelo médico, mas outros episódios despertaram minha curiosidade, um deles o fato de haver um cemitério em uma ribanceira bem próxima nos fundos do manicômio e durante a noite cadáveres eram arrastados para lá
pelos enfermeiros, isto aguçava minha imaginação. Outra situação intrigante era
a noite quando de minha janela no segundo andar podia testemunhar o dr. Frontin, iluminado apenas
pela luminescência da lanterna que carregava em uma das mãos abrir o pesado cadeado que
enclausurava todos que ali estavam permitindo a jovem Charlott, com seu desgastado traje propalar-se em meio a noite nebulosa. Os motivos daquelas saídas noturnas e para onde ela iria ainda era um mistério para mim, pelo menos até aquele momento.
Recordo-me da primeira noite na clínica quando circulava pelos corredores do segundo andar para conhecer o local e passando pelo gabinete de Frontin notei que havia a fraca iluminação da lanterna que ficava em sua mesa, observando pelo vão da porta que não estava totalmente fechada percebi que Charlott estava lá, totalmente despida a jovem dançava freneticamente rodando por toda sala enquanto o velho médico admirava a cena recostado em um divã. Naquele momento pensei quem naquela sala seria mais insano. Percebo agora que alguns favores tinham seu preço até mesmo no mundo irracional dos loucos.
As saídas noturnas de Charlott e o cemitério nos fundos da clínica eram situações inquietantes para mim, mas deveria ter cuidado, pois não poderia de maneira alguma me indispor com Frontin, afinal ele estava me dando toda oportunidade de estudar e observar o trabalho Hipnótico realizado por ele.
Ao completar a primeira semana no sanatório achei-me com coragem para investigar, então aproveitei uma noite chuvosa e fria e avancei furtivamente pelo corredor até a cozinha, onde pela porta lateral tive acesso à ribanceira do campo santo onde as inúmeras ossadas por mim
descobertas em meio a lama que escorria com a forte chuva eram uma imagem aterradora, mas meu objetivo era outro, queria saber onde se dirigia todas as noites a paciente preferida do diretor.
Tentei por várias noites seguir a paciente predileta do doutrinador de mentes, mas foram noites infrutíferas. O seu desregrado trajeto repetia-se a cada noite em frente a tavernas e na área mais miserável da cidade, até que entre os casebres e populaças e encoberta pela odiosa névoa eu a
perdia. Só a reencontrando na manhã seguinte na clínica. Não sei dizer porque mas aquilo tornou-se para mim uma obsessão, era imperativo descobrir qual o motivo daquelas saídas noturnas, e porque ela voltava todas as noites. Os dias foram se passando até que em uma sombria noite após seguir a jovem por logo tempo e novamente perdê-la de vista resolvi tomar outro percurso de retorno fazendo um trajeto em meio aos charcos. Certamente mais uma noite desperdiçada, naquele local o
nevoeiro era ainda mais intenso, mas para minha profunda surpresa eu estava no caminho certo. Escutei ruídos vindos dos charcos e vultos a movimentar-se na escuridão, primeiramente senti um medo petrificante, depois agachei-me e fui silenciosamente até onde os ruídos me levassem e encontrei Charlott em meio aos charcos e a neblina, uma cena digna da mais implausível lenda animalesca, vi jovem ajoelhada ao lado do corpo de um corpo, entre um som que mais parecia um grunhir de um animal a vagante bailarina sugava ferozmente as golfadas de sangue que jorravam do pescoço ferido de um homem. Eu estava vivenciando naquele mórbido e terrífico momento algo que jamais esqueceria. Tão demonicamente estava a sorver sua presa que minha presença por detrás das árvores e encoberta pela nefasta neblina que cobria aquele lugar infernal não foi por ela notada. Depois de alguns segundos fugi apavorado e enquanto tentava correr desesperadamente por entre os pegadiços charcos não saia de minha mente a imagem da face de Charlott com suas mãos e sua veste cobertos de sangue.
Retornei aos meus aposentos com as roupas enlameadas e tremendo quase descontroladamente, não tanto pelo frio que era intenso naque noite, mas principalmente pelo pavor que tomava conta de mim. Não sabia ao certo o que fazer, se falasse o que presenciei ao dr. Frontin poderia na noite seguinte juntar-me aos inúmeros corpos jogados na ribanceira. Se aquela monstruosidade em forma de mulher desconfiar que sei seu segredo eu poderia ser sua próxima vítima. Eu não tinha dúvidas que a situação em que me encontrava naquele momento era deveras preocupante.
Após das roupas enlameadas e tomar um banho tentei descansar em minha cama, mas isto não foi possível porque dormir naquele momento era algo improvável. Até que ao amanhecer alguém bateu a minha porta.
---Sr. Lawford, o dr. esta chamando para um café em seu escritório.
Normalmente o café era no refeitório juntamente com os seus colaboradores e com as freiras. Mas naquela manhã eu teria uma interpretação dos fatos pela ótica de Frontin.
Logo ao entrar em seu escritório fui recebido por Frontin, que com seu jaleco branco e sua camisa xadrez e a usual gravata borboleta na cor preta.
– Sente-se Lawford, você já esta há alguns dias conosco e ainda não tive o tempo necessário para expor por completo meus métodos e objetivos na clínica. Farei isto enquanto tomamos nosso mais reservadamente.
Sente-me a frente de sua mesa, onde uma bandeja com biscoitos e um bule de café estava a nossa disposição.
---Como você sabe Lawford, os métodos convencionais nunca poderão entender oque se passa na mente de uma pessoa desajustadas, isto porque o seu objetivo e conter a crise e não identificar a causa. Aqui, como já pode observar trabalhamos do modo inverso, incentivamos o desequilíbrio para estudar sua origem.
---Mas isto não seria um ato desumano, levar ao sofrimento para estudar sua causa? Perguntei.
Frontin apenas sorriu enquanto tomava seu café.
– Veja bem Lawford, não identificar as causas e deixar que futuramente outras pessoas tenham os mesmos distúrbios sem uma possibilidade de cura apenas porque meu senso ético não permitiu que prosseguisse. Isto sim seria uma desumanidade e uma covardia.
– Vendo desta maneira me parece que o sr. tem razão, mas existe algum limite para estas análises, creio eu.
O médico levantou-se calmamente o foi até o ármário que estava em um canto da sala, retirando uma chave do bolso do jaleco abriu a porta e retirou uma pasta de papel facha-o novamente depois. Retornou a sua mesa e colocou a pasta a minha frente.
– Com todo respeito amigo Lawford, eu tenho observado que tem um interesse especial por este caso, inclusive levando-o a se arriscar pela noite para investigar.
A pasta que o médico me passou as mãos era de Charlott Dolms.
---Sei que esta surpreso com muita coisa que esta vendo aqui, mas tudo tem seu propósito. Disse o médico.--- esta jovem mulher sofre de um transtorno clínico chamado ´´ Síndrome de Renfield``, que os leigos chamam vulgarmente de vampirismo, que além da necessidade incontrolável de ingerir sangue tem a pele muito sensível quando exposta a luz solar, fato que chamamos clinicamente de
``Porfírea Eritropoiética``.
– Peço que me desculpe se tomei alguma atitude que não lhe agradou doutor, mas minha ignorância quanto a estes detalhes me fizeram tomar atitudes precipitadas.
Frontin apenas sorriu levemente com meu pedido de desculpas, e fechou a pasta que estava sobre a mesa.
---Não se preocupe Lawford, em seu lugar eu também agiria da mesma forma. Mas agora que já esta a par de tudo , ou quase tudo, eu o convido para me ajudar nas pesquisas e quem sabe dar a ciência uma boa contribuição.
– Certamente doutor, estou a sua disposição.
quarta-feira, 10 de julho de 2019
O Refúgio Sagrado
Seguia em minha montaria a tortuosa e extremamente perigosa estrada de Derbyshire para chegar a cidade do mesmo nome, na região Oriental da Inglaterra. Estávamos no rigoroso inverno de 1890, ano em que as plantações em toda Inglaterra foram seriamente castigadas. Me dirigia a Clínica Psiquiátrica Real onde meus préstimos como esculápio seria de grande valia visto quer havia um surto de febre tifoide naquela região e certamente no mundo dos enfermos e necessitados minha aparência bem incomum não seria empecilho para trabalho humanitário.
Tenho meus particulares motivos para ir a um lugar tão distante para fazer a caridade, minha face não tem um agradável aspecto pois as cicatrizes deixadas pelas chamas durante o terrível incêndio que destruiu a capela da Aldeia de Kemble deixaram meu rosto e minhas mãos miseravelmente deformadas. Embora evite os lugares com
aglomerações de pessoas devo me acostumar com a reação delas, olhando-me como a um animal em um circo de horrores. Sem falar certamente, nas
terríveis lembranças daqueles assombrosos acontecimentos.
Mas a noite estava chegando e o céu em um breu assustador,encobria as nervosas ondas do rio Derwent que se precipitam nos rochedos ao longo de toda estrada tocadas pelo vento que a cada momento parecia ficar cada vez mais forte. O seu aspeto inspirou-me verdadeiro terror e ao parar meu cavalo senti um forte desejo de voltar atrás. No entanto, imediatamente me envergonhei da minha fraqueza e continuei, saltei de minha montaria e procurei proteção na murada de pedras, mas era praticamente inútil. Naquele momento era necessário encontrar um abrigo o mais rápido possível pois uma tempestade estava por chegar com toda sua fúria. Raios precipitavam-se furiosamente como flechas de fogo no céu. Olhei pela borda do penhasco e vi uma vasta extensão de mar cuja cor escura e o vento que bramava violentamente me recordou imediatamente o quadro de Pierre August intitulada ``A Tempestade´´, mas verdade era a morte que aproximava-se e lançava sua negra sombra sobre tudo. Sem dúvida era o panorama mais espantosamente desolador e assustador que a imaginação humana poderia por ventura conceber, o ruído mais forte do vendaval que abraçava a muralha de pedras soava como um uivo de uma criatura diabolicamente feroz e assustadora. Fui fustigado pela fúria indomável do vento que fez minha montaria retornar em desabalada carreira.
Ao meu lado um imenso precipício de granito luzidio e negro, por nada
do mundo eu deveria me aventurar próximo a borda pois seria sugado pela força do vendaval, eu estava tão profundamente confuso e agitado pela situação perigosa daquele momento que me deixei cair a todo o comprimento no solo e encostei-me a alguns arbustos pensando ser ali meu derradeiro a minutos quando a frente avistei uma construção a frente, pensei imediatamente fugir daquela terrível tempestade. Uma luz anunciava que próximo estava de algum abrigo, ou, pelo menos, assim me parecia.
Ao aproximar-me constatei que a construção era como um velho castelo medieval mas em menores proporções, sua entrada era em forma de arco que cobria toda estrada, sobre ele uma abóboda com vitros coloridos, parecia ter dois andares sobre o majestoso arco e três pequenas janelas onde uma delas, com uma pequena luz deveria ser o indício que encontraria um local seguro a um viajante apavorado. Toda a estrutura era com enormes pedras que cobria toda estrada tornando impossível seguir viagem sem por ali passar, como se a túnel fossemos obrigados a passar para entrar em Derbyshire.
Iniciava ali a aventura mais extraordinária que jamais ouvira relatar algum ser mortal, ou pelo menos tão extraordinária que homem algum pôde a ela contar e as cinco horas seguintes que passei naquele refúgio despedaçaram-me a alma e despertaram lembranças e traumas a muito adormecidos no fundo do meu ser.
Aproximei-me do inusitado local enquanto toda estrada tremia em sua base e o rochedo mexia-se perigosamente. Deitei-me de bruços num excesso de
agitação nervosa e encostei-me a parede de pedras junto ao portal de presumi ser a entrada daquela majestosa construção, mas meu pavor era tamanho que já não bastava a vontade de viver, era imperioso rogar por uma ajuda que esteja além do que possa ver.
Lembrei-me que no domingo da Sexagésima de 1885, o padre Antônio Vieira,de Portugal, presenteou-me com o livro Semen est verbum Dei (S. Lucas, VIII, 2) ``A semente é a palavra de Deus´´, então de Joelhos ao chão e com as vestes completamente encharcadas pela forte chuva retirei de meu alforje o livro e cruzei os braços segurando-o fortemente contra o peito, coloquei meu rosto quase ao chão como a implorar ao senhor um perdão imperioso, pois não queria perecer naquela tempestade como um excruciante pecador.
Permaneci não sei dizer quanto tempo a suplicar pela minha bida até que através de uma pequena janela um homem vendo meu intenso desespero abriu a porta que dava entrada a estranha
construção e aproximou-se, mesmo com o vento arrastando quase tudo que
encontrava pela frente o homem parecia não temer a fúria dos ventos e chagando até onde eu estava ergueu-me pelo braço para levar-me até a porta, carregou-me para dentro e tratou de fechar rapidamente a porta, então pude ver melhor quem havia saído em meio a uma tempestade para salvar um desconhecido. Vestia-se como a um nobre aristocrata Londrino, com uma vasta capa escura e na mão portava uma bengala com cabo de prata em formato de cabeça de um cão.
Ninguém poderia imaginar a mescla de sentimentos que me invadiam naquele momento entre a alegria e o espanto, surpresa quando me sentou a uma poltrona próxima a uma das janelas e serviu-me uma taça de vinho. Lá fora a tempestade bramia furiosamente mas meu anfitrião não mostrava qualquer preocupação.
Enquanto eu ainda aturdido bebia o vinho o homem abriu a porta lateral de uma estante e pegou algumas roupas colocando-as no braço da poltrona.
– Troque suas roupas molhadas no quarto ao lado. Disse ele ---Lá também encontrará sapatos secos.
Ele parecia não se importar, ou, pelo menos, não deixava transparecer que notara minha aparência horrenda devido as queimaduras. Retornei a sala já com roupas secas e tentando ficar calmo, mas mantinha minha cabeça baixa, o que para mim já era de costume.
De dentro do castelo se podia observar as águas em convulsões frenéticas, ofegando, borbulhando, assobiando, voltando-se em gigantescos e inumeráveis turbilhões, que certamente buscavam alcançar as portas de meu refúgio. Permaneci sentado a poltrona com as vestes secas mas ainda um sentimento de pânico dominava por completo meu corpo. Gelava-me o sangue só em pensar no perigo que passei.
Observei que a sala era apenas uma das alas da construção e que as janelas ocupavam assim três lados do estranho refúgio, a porta por onde fui conduzido a entrar estava situada no quarto lado e havia pelo menos seis janelas. A mesa achava-se esplendidamente servida para um banquete, mas não havia mais ninguém na casa. Estava coberta de louça lisa e sobrecarregada de inúmeras espécies de iguarias, jarras com vinho, pequenos lampiões pendurados nas laterais da sala faziam uma fraca a alentante iluminação. Observei sobre uma pequena mesa um
Quinetoscópio, uma caixa com um pequeno visor na parte superior inventada por Willian Kennedy, com a ajuda de Sir. Thomas Edison, neste inovador aparelho era possível reproduzir imagens em movimento através da gravação em uma película. Mas tudo para mim era muito vago, mas aparentemente seguro.
Rompendo a diafanante teia de algum sonho era uma visão de extraordinária magnificência, uma manifestação de sofisticação e nobreza em
meio aos caos.
Após alguns cálices de vinho em uma taça de prata genuína com uma cruz templário gravada na parte externa e uma esplêndida refeição o
estranho anfitrião identificou-se como sendo o Almirante Berthmor da real
marinha inglesa, mas preferia de ser chamado pelo título herdado de sua família, Lorde Berthmor. Durante o decorrer da noite, enquanto lá fora a impiedosa tempestade jogava suas águas nos coloridos vidros das pequenas janelas fui relatando, incentivado pelo Lorde, detalhe das atrocidades por mim cometidas no passado, e a calma e a altivez,com que lorde Berthmor ouvia minhas palavras me deixava um pouco desconfortado, permanecia sentado em uma poltrona frente a mim apenas escutando, em nada
dizer.
– O Lorde tem algo a dizer? Perguntei
--- Prejudica minha visão examinar o acontecido com fato isolado, pois examinando assim enxergarei um ou dois pontos somente, e ao fazê-lo perco de vista uma compreensão do todo, continue sua narrativa sr. Lawford. Respondeu ele.
Ao confidenciar episódios de meu obscuro passado ao estranho Lorde sentia-me ao mesmo tempo desafogado de meus remorsos, sentia-me mais leve.
Uma conversa inesperada, com um alguém desconhecido e entre trovões e relâmpagos que clareavam o ambiente trouxe a lembrança de fatos que devo admitir, nada tenho a orgulhar-me em deles ter participado. Mas afinal que teria eu a perder em contar algo a homem que talvez jamais volte e ver-me.
– Aproveite o momento Lawford! Disse o Lorde enquanto apreciava calmamente seu vinho.---- Nunca sabemos quem mais esta a escutar nossa conversa. arrependa-se sinceramente de seus pecados e quem sabe ao sair desta casa seguindo seu caminho poderás estar perdoado de seus mais terríveis atos, sua alma livre de todas as culpas, e ainda suas cicatrizes no corpo e no espírito curadas.
E sem mesmo entender o interesse de Berthmor por minhas irrelevantes aventuras fui repassando uma a umas minhas nefastas atitudes assegurando ao Lorde delas estar arrependido.
Já quase ao amanhecer, quando a tempestade já havia passado e deixado como rastro apenas um imenso charco na estrada, Berthmor, creio que já exausto de ouvir minha confissão e lamúrias, ergueu-se de sua poltrona e colocou sua mão em meu ombro.
– Meu nobre inesperado amigo, sua parada aqui não foi em vão pois limpaste teu coração, tua alma e teu espírito, e após descansares
iras também limpar teu corpo. Amanhã certamente entenderas que nada acontece por acaso.
Dizendo isto me alcançou uma almofada que havia sobre o assento de sua cadeira.
– Durma um pouco e amanhã serás um novo homem, mas lembre-se, siga em frente, complete sua jornada e não retornes por esta estrada.
E assim o fiz, recostando-me a poltrona que estava sentado me deixei dominar pelo cansaço e pelo excesso de vinho ingerido durante a conversa. Sem dar maior importância ao comentário feito por ele a respeito de não voltar mais pela mesma estrada e somente seguir em
frente.
Berthmor fechou as cortinas das pequenas janelas e retirou-se do salão, sua aparente calma me deixara apreensivo no começo mas agora já a julgava bastante normal para quem ali vivia a muito tempo.
Ao acordar o sol já havia assumido seu lugar e brilhava intensamente sobre os rochedos, a tempestade tinha se dissipado. Caminhei até a janela para abri-la e meu espanto deixou-me perplexo pois ao segurar o ferrolho da fechadura para abri-la notei que minhas mãos, que até então estavam deformadas pelo fogo eram novamente normais, sem o menor sinal de
cicatrizes, imediatamente fui até a mesa da sala e ergui o cálice de prata ao
qual degustei vinho durante boa parte da noite e vi refletido minha
face, perfeita como se a um milagre fosse eu submetido. Todas as cicatrizes sumiram como em um passe de mágica. Impossível descrever a felicidade que tomou conta de meu corpo que outrora tremia de pavor.
Agora entendia porque não podia mais voltar atrás, pois naquela tempestuosa noite, ao redimir-me de meus pecados, do meu
passado, recebi a graça de voltar a ser uma criatura de aparência normal.
Deus fez o homem a sua imagem e semelhança, deveria eu agraciado pelo
acontecido, seguir meu caminho até a Clínica Psiquiátrica Real, meu primeiro
destino e lá dedicar-me a fazer a obra do meu Criador.
Abri a porta do refúgio sagrado e encontrei minha montaria atrelada a um dos pilares da construção, montei imediatamente e segui meu caminho, eu tinha uma missão a cumprir. Após alguns quilômetros percebi que fui egoísta em sair da casa sem agradecer ao homem que tornou possível minha transformação de uma monstrosidade para um homem normal, resolvi retornar a dizer-me grato por tudo.
E para meu espanto, ao retornar ao local onde tudo aconteceu, nada encontrei, da majestosa construção nenhum sinal.
segunda-feira, 10 de junho de 2019
Prazer e Pecado
A única maneira de livrar-se de uma tentação é incontrolavelmente entregar-se inteiramente a ela. O devanear é um prazer perfeito e deixa-nos maravilhados, não existe vergonha no prazer pois precisamos sentir felicidade, mas a sociedade hipócrita pede que sejamos lúcidos, mas quando somos lúcidos o tempo todo raramente somos felizes. Por outro lado quando deixamos fluir o que de insólido esta dentro de nós sentimo-nos felizes e isto é extremamente bom. Nenhum ser civilizado arrepende-se do prazer pois somos presenteados com duas coisas maravilhosas, a juventude e a beleza, elas devem ser vividas com toda sua força e irreverência, com seus inúmeros exageros. Nossa vida não é feita de momentos perdidos, mas sim, daqueles que vivemos intensamente e que ficam gravados em nossa memória. Sempre devemos fazer prevalecer a chama mais forte, seja ela branda ou encandessente.
Algumas coisas são preciosas demais justamente pelo fato de não serem duradouras, a natureza sabe muito bem disto e devemos muito a ela, ou ela a nós, não sei ao certo. Mas oque sabemos é que envelhecemos, ficamos com marcas no rosto e na alma porque os deuses são cruéis e possessivos, e fazem de nossos pecados pesadas cruzes a serem postas em nossas costas. Na juventude não existe limites para a beleza assim como na velhice
não existe limites para a deformidade. Somos sufocados por nossa servidão social e aprendemos que o que é sagrado não pode ser tocado, tememos nossas mais íntimas paixões, um temor que vem desde o berço, temer a Deus, temer os pais ,e temer a sociedade e suas devastadoras doutrinas.
Somos ensinados sempre a acovardar-nos em auto negação, mas a vida nos ensina que todo desejo reprimido acaba por envenenar a nós mesmos. A vida deve brilhar com sua chama forte e inebriante pois sua luz não cega a ninguém e seu calor a ninguém queima. É preciso submergir para os prazeres do mundo, mas sabendo que é por sua conta e risco e tudo que deixa-nos extasiados tem seu preço. Tudo acontece muito rápido e quando damo-nos por conta a vida já passou. Mas todo charme do passado, creio ser justamente este, algo que já passou, algo que transpassou seu limite de tempo e espaço.
Os vapores multicoloridos, as vozes em murmúrio, o giro deslumbrante de tudo ao nosso redor, não sei se é felicidade mas causa-no um extremo prazer, sem culpa e sem temores, pois em breve será passado. Vagamos pelas avenidas imprevisíveis do subconsciente pois a natureza humana é um mistério que a luz da razão não consegue alcançar.
sexta-feira, 10 de maio de 2019
Manicômio do Terror
Clínica Psiquiátrica Real
Derbyshire-1890 -
A insanidade, o desespero, a fúria incontrolável, a loucura violenta que deteriora a mente, a deformação do ser humano. O fogo que lacera a carne, a lama que congela os pés, a fuga de uma lucidez sem rumo.
O abandono absoluto da realidade, os trapos encardidos que cobrem as minúsculas janelas, a angustia e a agonia incontida da alma. A luz precária, a chama trêmula, o ruído amedrontador das correntes, o odor ferruginoso das grades.
Deus chora por nós, pelos desequilibrados, pelos alienistas, por onde o cavaleiro das sombras cavalga, onde a espada do inferno nos ataca barbaramente. O maligno infiltrando-se em nossa alma, e a constante inconsciência que nos atormenta. Transborda o cálice do demônio escorrendo seu néctar de terror pelas fétidas paredes de pedras.
O caos extremo do espírito, a degradação humana, a razão refém da bestialidade, a alienação devastadora da alma.
A revelar-se o animal adormecido dentro de cada ser humano, delirante, enfurecido, bizarro. A cruz que não alimenta a fé, a luz que não dissipa as trevas, a crença que desmorona como as pilastras de um templo em ruínas.
E o mal se propaga promiscuo e voraz a dominar as criaturas que a debilidade recrutou.
Convulsões, histeria, gritos, tudo para ser estudado em uma ciência imprecisa, experimentos vão ao limiar da inconsciência e só então o choque elétrico libertara o espírito do hediondo sofrimento. Amarre-se aquele que está com o maligno, deixe debater-se pois vamos estudá-lo. Tudo pela evolução da ciência, tudo pelo bem do conhecimento .
Na sombra tirânica da cruz a violência está a brotar pelos escuros e sujos corredores, pelas celas úmidas, nos colchões esfarrapados onde ficam aqueles que a irmandade chama de escória. O cheiro de éter se espalha pelo mórbido ambiente. A cabeça a bater na parede, mostrando a violência do instinto incontrolável, é mais um delirante a escorrer seu sangue pela parede pútrida da cela, aí vem a morfina, e o sono profundo.
O lunático com o olhar estático como se pudesse atravessar paredes, ver o infinito, as mãos trêmulas, os pulsos esqueléticos, as cicatrizes na alma, uma fuga da vida em vão, sem propósito. Do outro lado das grades estão as freiras, o hábito, o rosário, mas também o chicote, o ferro em brasa a transpor a carne, o castigo divino em forma de fogo.
O tilintar dos cascos dos cavalos, é o carroção fechado, o cadeado a bater na grossa porta de ferro, alguém a espreitar pela ventana, é mais uma remessa de miseráveis indesejados pela confraria mesquinha.
Somente Deus pode lançar uma praga como punição por nossos possíveis pecados, mas nem toda praga é obra de Deus, existem homens que acreditam terem o imenso poder de Deus.
Já é noite, pelos sujos e pequenos vidros da minha janela a luz da lua invade o acanhado cômodo realçando a precariedade do mobiliário, ouço gritos de desespero e gemidos vindos das imensas alas do manicômio.
Tento não sucumbir naquele mar de insanidade e tortura, cobrirei
meu rosto com as mãos e chorarei de remorso por ver no que me transformei, e então farei como faço todas as noites, uma dose de ópio e adormecer até o próximo dia.
quarta-feira, 10 de abril de 2019
O relógio de Ouro
Para esclarecimento ao leitor parece-me oportuno entrar em alguns detalhes deveras necessária a esta explicação pois é feita com o intuito de narrar com a mais pura veracidade possível a terrível cena de que foi teatro o local a que irei me referir.
Já era noite alta e a taverna O Gato Azul, na verdade nunca consegui entender porque este nome nem tampouco teria visto alguma vez um animal com tal cor, mas emfim o local estava como sempre lotado, entre marinheiros e trabalhadores do cais londrino misturavam-se escritores, filósofos, médicos, e o mais variado tipo de clientela. Pelo exame comparativo de suas dependências e mobiliário posso afirmar que o local desde a
sua origem teve o mesmo aspecto que atualmente conserva. Quanto a data desta origem sinto não ter conhecimento, e se assim posso considerar em face a antiguidade seriam dos primórdios da área portuária londrina.
O taberneiro Edmondo acabara de trazer-me uma caneca com a mais pura bebida destilada da região quando chamou-me a atenção um marinheiro que descobri chamar-se Aron Kominski. Gabava-se de façanhas no mar e em terra, e é claro, pelas suas narrativas nunca teria perdido uma briga. Naquela noite Kominski estava a pagar rodadas de bebidas aos acompanhantes que o rodeavam, fato que era de se estranhar, pois sua condição financeira era sempre muito precária, já embriagado falava com muita fluência e balançava em sua mão direita um relógio
de bolso, aparentemente pelo seu brilho do objeto em sua mão coberto com uma camada de ouro, com um brasão em sua parte frontal e seguro por grossa corrente, provavelmente do mesmo material. Em sua alegria desmedida o marinheiro gritava enquanto era abraçado pelos seus colegas de infortúnio de beira do cais:
--Hoje eu bebo e pago, estou com meus amigos e ninguém vai me colocar pra fora desta espelunca. Fato que por diversas vezes já acontecera quando o beberrão marinheiro não pagava o que consumia e Edmondo o colocava para fora da taverna.
Mas o inimaginável ainda estava por vir. Em meio a fraca iluminação que vinha dos lampiões colocados nas paredes laterais ergueu-se de uma mesa ao fundo do estabelecimento um jovem que aparentava estar entre os seus vinte e cinco e trinta anos e lentamente se aproximou do balcão onde estava nosso alegre marinheiro. Tinha o vem a cabeça altiva e os cabelos bem penteados, seu traje compunha-se de uma capa preta ajustada típica da burguesia londrina e de e um dos bolsos saíra a ponta de um lenço aparentemente de fina seda vermelha. Calças de nanquim preto, sapatos
pretos com saltos elevados a carregava debaixo do braço esquerdo um chapéu pequeno de abas estreitas no mesmo tecido da capa.
Mesmo sendo discreto o indivíduo apesar do aspecto muito nobre tinha qualquer coisa na fisionomia que nada de bom pressagiava. Sua maneira de olhar me dizia que nenhum pensamento positivo vociferava em sua mente naquele momento.
Aproximou-se do balcão da taverna e se postou a frente de Kominski falando em voz clara e solene.
– Gostaria de comprar seu relógio, será que posso vê-lo?
Já imaginado uma vantagem financeira o marinheiro passou de imediato o objeto a ser negociado as mãos do jovem comprador e acrescentou.
– Seu antigo dono era um nobre cavalheiro de londrino e por isto não posso vendê-lo barato.
---Realmente pelo brasão que esta gravado nele posso ver que se trata de um objeto de uma tradicional família. Retornou o jovem.
– O sr. poderia me dizer como este relógio chegou em suas mãos?
Marinheiro mostrou-se incomodado com a pergunta.
– Se não quer comprá-lo não tem problema, eu o venderei para outra pessoa.
Então o jovem colocando seu chapéu sobre o balcão levou sua mão esquerda no bolso de sua capa, sua mão direita pousou no ombro do falastrão negociador e disse-lhe.
– Sei que este relógio pertenceu a um nobre homem e também sei como chegou a suas sujas mãos.! E continuou
--Este homem era meu pai e você o matou para roubar-lhe esta joia e o dinheiro com o qual esta bebendo hoje.
Sem que alguém pudesse pensar em alguma reação o jovem retirou do bolso um punhal enfiando-o totalmente no peito de Kominski que foi empurrado violentamente contra a parede da taverna.
Por breves instantes um silencio mortal tomou conta do local enquanto o velho falastrão esparramava-se ao chão, já sem vida, e segui-se um burburinho ao redor do morto. Tempo este em que o jovem chegara até a porta de saída da taverna para fugir, mas não sem antes virar-se aos olhares perplexos de todos que ali estavam e dizer-lhes;
– Nada fazeis que fique oculto pois isto abreviará tua morte.
Pela pequena janela da taverna pude ver o cavalo em desabalada carreira passar levando em seu dorso o jovem justiceiro.
sexta-feira, 22 de março de 2019
A Última Viagem
Rapidamente atravessei o porto de Londres pois estava deveras atrasado para a viagem mais esperada por mim até então.
A data era 19 de maio de 1872. Meu amigo e capitão John Franklin estava para partir com seu gigantesco navio cargueiro Erebus, tendo como destino o Ártico Canadense. Abordo estavam 84 oficiais, 35 homens de expedição e 6 cientistas. Nosso objetivo era navegar através das águas traiçoeiras que separavam os oceanos Atlântico e Pacífico. A embarcação liderada por John Franklin tinha como missão coletar amostras e realizar estudos científicos por regiões que julgávamos serem ainda inexploradas.
Como havia recebido o convite do amigo John integrei-me a expedição para registrar por escrito as aventuras nos mares gelados pelo qual
tencionávamos passar. Era uma expedição de pesquisa e não sabíamos ao certo o que iriamos encontrar pelo caminho, mas a tripulação era formada por homens com vidas espartanas, frugais pesquisadores, dispostos a qualquer sacrifício para permitir a realização de seus ideais.
Tratei imediatamente de acomodar-me em uma pequena cabine, sabia haver outras de tamanho e acomodações mais agradáveis porém aquela tinha algo de especial para mim pois ficava ao lado da ponte de comando, fato que me era muito favorável visto que tinha que estar atento a todos os detalhes daquela magnífica aventura.
Após todos estarem devidamente acomodados e as últimas providências tomadas partimos lentamente do porto de Londres. Muitas pessoas vieram dar seu acesso de despedida a tripulação, que retribuía também com acenos e sorrisos. Por três longos dias permaneci em minha cabine tentando entender aquela pilha de cartas náuticas sobre em minha mesa e degustando o mais puro malte escocês que foi gentilmente destinado a mim pelo capitão. Durante a noite circulava pelo convés na companhia de John enquanto ouvia do capitão uma breve narrativa de suas inúmeras aventuras pelos sete mares. Somente em uma determinada noite enquanto caminhávamos percebi na penumbra da noite que envolvia a embarcação como um escuro manto, que algo de diferente parecia se ocultar na nimbosa noite. Aproximei-me o máximo possível da borda do tombadilho e esforçando-me para ver mais distante percebi uma singularíssima nuvem isolada no lado noroeste do céu.
Distinguia-se não só pela sua cor acinzentada mas também por formar um gigantesco véu. Mesmo mergulhados em uma escuridão profunda da noite aquela nuvem se aproximava rapidamente. O capitão disse sem dúvida que se tratava de um forte nevoeiro, o que confesso me deixou um tanto quanto temeroso quanto ele concluiu sua observação afirmando que diversas vezes havia navegado naquela região e jamais avistara qualquer nevoeiro.
A nuvem aproximou-se com uma velocidade espantosa e em meio
ao gélido nevoeiro que já começava a penetrar a polpa do navio pude ouvir a
capitão John perguntar ao imediato;
--- Em que ponto do pacífico estamos? E a resposta foi imediata
--- Desculpe senhor, mas os instrumentos de navegação pararam.
Jonhn e os marinheiros assumiram seus postos na cabine de comando para tentar resolver o problema enquanto o restante da tripulação dormia sem saber o que se passava naquele momento, e repentinamente houve um silêncio mortal que permaneceu por quase um minuto, durante o qual a queda de uma folha ou o flutuar de uma pena poderiam ser ouvidos, isto porque os motores paralisaram totalmente e a densa nuvem engoliu o majestoso cargueiro sem que pudéssemos visualizar a um metro de nosso olhos.
Não sei bem por que motivo, mas imediatamente me veio a mente a casa onde morava na St. Toole 123 e a imagem de Aurora, minha já falecida esposa. Minha amada faleceu aos vinte e três anos de idade e deixou um vazio martirizante em minha alma, e em devaneios a vejo chegando e sorrindo e por efêmeros minutos sinto retornar o sentimento de afeto que ela por três magníficos anos dedicou a mim. Mas jamais imaginaria oque estava por acontecer naquela noite.
Um sopro de vento gelado percorreu todo o convés e a nuvem aos poucos foi se tornando menos densa e foi possível visualizar a proa do navio quase por completo causado-me a reação mais apavorante que se possa imaginar, encontrava-me sozinho envolto naquela névoa que me tirava o fôlego. Agarrado as bordas do tombadilho vaguei cambaleante, estonteado que estava pela imersão naquela neblina diabólica, tentei sem sucesso encontrar
alguém da tripulação ou do grupo de pesquisa, as luzes completamente apagadas, os motores desligados, e um silêncio mais apavorante que o uivo de um animal feroz. O cargueiro Erebus estava abandonado nas águas gélidas do Canadá.
O descontrole e o pavor tomou conta de meus sentidos, desesperadamente dirigi-me a escada que levava a sala de comando, subi a correr e não foi surpresa o que encontrei, a sala estava vazia e o leme girava como se alguém o controlasse, a bússola gravitava para todas as direções. Estávamos a deriva no oceano e encobertos pela escuridão.
Gritei duas vezes pelo nome de John mas foi em vão, já pensava em esconder-me esperando amanhecer para entender o que de tão inacreditável havia acontecido quando um som cortou a tenebrosa neblina e chegou aos meus ouvidos, pareceu-me uma voz longingua, alguém chamando ou pedindo socorro, então desci a correr as escadas da sala de comando tentando identificar a direção daquela voz que poderia ser de
algum tripulante, que certamente como eu deveria estar tomado pelo mais terrível pavor. Enquanto me aproximava mais e mais da proa do fantasmagórico navio o som chegava com mais clareza e um sentimento aterrador dominou-me quando, gelando até o fundo de minha alma em meio aquela infernal neblina alguém chamava por mim.
Meu nome era ouvido em todas as direções acompanhado com o som de lamentações, um lamento com uma voz feminina e por demais aterrorizante, lembrando-me novamente de minha esposa Aurora em seus momentos finais de vida, mas tudo aquilo parecia absurdo, talvez fosse um pesadelo.
Tentei permanecer lúcido, racionalizar aquele momento ilógico, mas o som vindo sei lá de onde perecia-me sair dos cantos mais profundos do inferno e ressoava entre a escuridão e neblina em uma combinação diabólica entranhando-se em meus ouvidos.
Pensei ser aquele momento o meu juízo final e muito provavelmente aqueles que não mais vejo estariam todos salvos, somente eu havia ficado para vagar pela eternidade neste mar de lamentações e penúrias.
Caindo de joelhos no convés da embarcação, com a cabeça entre
as mãos desejei fervorosamente nunca ter estado ali, nunca ter embarcado naquele navio pois não sabia qual destino seria traçado para mim.
Continua…
domingo, 10 de fevereiro de 2019
A Violinista Cega
Os Finais de
tarde do St. James Parks’s na Picadilly Street, durante o Outono londrino eram o ambiente ideal para um passeio, principalmente para quem busca no cotidiano de Paris uma inspiração para escrever. Figuras de todos os tipos circulavam por ali.
Foi em um destes belíssimos entardecer que conheci mademoiselle Ninna, uma encantadora jovem de origem polonesa, doce e meiga como as mais belas flores que embelezam o St. James’s. Eu havia saído da Real Academia Londrina após assistir a uma audição de
piano de Madame Margot Challen quando vi aquela bela jovem sentada solitária em um banco do Park. Sentei-me ao seu lado e em poucos instantes a conversa adveio naturalmente. Apesar de sua inegável beleza, as adversidades que a vida traz levou Ninna até o Le Blanc Club, onde na condição de acompanhante buscava na noite o dinheiro para seu sustento.
Contou-me que morava sozinha, falou-me de sua família e sobre a morte de seu irmão marinheiro assassinado em um bar do cais. Após algum tempo convidou-me para caminhar e disse que gostaria de apresentar-me alguém, então passamos por alguns caminhos entre os coloridos jardins até chegarmos a magestosa fonte que situava-se na parte central do lugar. Um
chafariz em forma de pássaro lançava suavemente jatos de água ao centro da belíssima fonte construida certamente no periodo vitoriano.
Sentada ao lado da fonte uma jovem tocava com extrema habilidade um violino, tinha cabelos loiros e encaracolados, cobertos por um belíssimo chapéu com plumas e uma rosa no centro, no mais nobre estilo londrino.
---Venha. Disse ela; quero que conheça Clarett !
Ninna segurou minha mão conduzindo-me até a bela violinista que tocava com maestria e sorria.
Ao aproximar-me pude observar pela maneira como a jovem musicalista se
movimentava que ele era completamente cega.
---Oí Ninna.
Disse ela notando nossa chegada mesmo que não tivéssemos pronunciado uma só palavra.
---Estas acompanhada hoje? Completou ela.
---Sim amiga Clarett, quero que conheça meu amigo Lawford. Respondeu Ninna.
Aquela apresentação foi o suficiente para que pudéssemos conversar alegremente, até minha tão linda acompanhante pedir licença para sair pois já estava na hora de dirigir-se para o Le Blanc, mas não sem antes colocar uma generosa gorjeta no estojo do violino da instrumentista cega.
E assim sucedeu-se por incontáveis tardes, nossos encontros tinham inicio nos jardins do parque e findavam nos aconchegantes aposentos do Le Blanc Club.
Até que em uma fria tarde de inverno londrino minha linda polonesa não apareceu, a neblina era intensa, pessoas pareciam emergir da bruma, de início cinzentas como fantasmas e depois pouco a pouco e com muito custo tornavam-se reconhecíveis. Sem saber o motivo de Ninna não aparecer imediatamente procurei sua amiga Clarett.
---Ela passou aqui mais cedo que o de costume Sr. Lawford, estava com outro cavalheiro, discutiam muito e ela chorava a soluçar.
---Ela disse o nome dele ? Perguntei
Teria ela encontrado outro amigo tão chegado quanto eu?
estes pensamentos e outros igualmente terríveis atravessaram-me o espírito com uma rapidez extraordinária.
---Não, ela não falou comigo, apenas deixou algumas moedas no meu estojo e saiu.
Aquelas palavras caíram pesadas e geladas nas profundas trevas das escuras regiões mais recônditas da minha alma, fiquei muito decepcionado, mas esperar demonstrações de fidelidade de uma mulher que busca na noite londrina sua sobrevivência seria totalmente irracional.
Por três dias consecutivos ela não apareceu nos jardins do parque tampouco esteve a noite no clube. Sem saber ao certo onde procurar fui ao encontro de um velho amigo,o inspetor Thormann.Com certeza ele poderia dar-me alguma orientação de como encontrar minha desaparecida amiga.
---Primeiramente meu amigo Lawford, deverias procurar no necrotério da cidade.Pois você sabe tão bem quanto eu que prostituas estão exposta a todo tipo de perigo.
A afirmação de Thormann levou-me a um desfecho irremediavelmente terrível e nunca por mim imaginado. No necrotério municipal, mesmo com a fraca luz dos pequenos lampiões não foi difícil identificar o corpo de Ninna. Uma perfuração embaixo do seio esquerdo foi certeiramente mortal atingindo o coração da jovem. Segundo o esculápio que examinou o corpo,podia afirmar que o golpe foi feito por alguém que sabia onde
fazer a incisão, pois não havia outros ferimento no corpo.
A morte da Ninna abalou-me de tal maneira que por alguns dias permaneci trancado em meu chalé na St. Tooley 123. Abrandava na bebida minhas lembranças da linda jovem que por alguns dias fez-me sentir novamente a utópica felicidade. Até que em uma tarde retornei ao St. James’s e fui direto ao local onde Clarett, como fazia em todas as tardes, enchia o local com os sons melodiosos de seu Violino em troca de algumas
moedas.
---Aproxime-se Sr. Lawford ! Disse ela.
---Como sabia que era eu Clarett? Perguntei intrigado
---Quando Deus tira-nos um dom deixa os outros sentidos mais aguçados, meu olfato e minha audição são previlegiados. Respondeu ela
Sentei-me ao seu lado na esperança de buscar alguma informação.
---Sinto muita falta de Ninna. Comentei em voz baixa.
---Havia um homem com ela a três dias atrás, mas nenhum do dois retornou ao parque.
---Como sabe que não voltaram?
Meu coração apressou-se de maneira desordenada.
---O perfume que ele usava eu reconheceria se o sentisse novamente, e ela não iria embora sem se despedir de mim. Algo de muito ruim aconteceu.
Aquele comentário ascendeu uma chama de esperança de saber onde e com quem Ninna estivera antes de morrer.
---poderia identificar a pessoa somente pelo perfume? Perguntei .
E a resposta deixou-me ainda mais esperançoso.
---Não só pelo perfume Sr. Lawford, mas também pela voz, ele tinha uma voz rouca e sotaque carregado. Como os Irlandeses.
Saí imadietamente,quase a correr até o distrito policial pois lá o meu velho amigo e também Irlandês inspetor Thormann com certeza poderia ajudar.
---Meu bom amigo Lawford,quantos irlandeses vivem em Londres ? você esta procurando uma agulha em um palheiro. Respondeu Thormann sorrindo.
---E porque preocupar-se tanto com uma prostituta? a cada esquina tem uma sujando a cidade, é como uma praga.e esqueça esta moça, ela não merece sua preocupação.
Mas eu não estava disposto a abdicar da busca pelo assassino.
---Por favor Thormann, um crime foi cometido e você é policial, pelo menos vamos investigar.
---Lawford, você diz ter uma testemunha cega, que loucura é esta ?
Thormann zombava de minha afirmação, não acreditava ele que uma deficiente visual poderia identificar um criminoso apenas pelo olfato. Após muito persistir o inspetor concordou em ir até o parque interrogar a testemunha.
---Devo avisa-lo Lawford. Disse Thormann; estás perdendo seu tempo e o meu, mas vamos lá e depois vamos degustar uma deliciosa xícara de chá com torradas no Café Blanchê.
E assim foo feito, ao chegarmos no parque fomos diretamente onde estava Clarett.
---É esta a testemunha. Disse eu apontado para a jovem violinista que permanecia sentada ao lado da fonte. Thormann agachou-se bem Próximo da jovem e falou-lha baixo e calmamente.
---Senhorira, meu nome é Thormann e sou da policia londrina, meu amigo Lawford disse-me que podes ajudar na identificação de um homem que esteve neste parque com a jovem de nome Ninna, isto é verdade?
Ouve um breve silêncio e a violinista parecia-me assustada, suas mãos tremiam como se sentisse medo de algo, ou de alguém.
---Senhores! Disse ela; aqui no parque existem muitos ruídos e o perfume das flores se misturam com outros odores dos jardins. Conheço Ninna, é minha amiga, mas não posso ajudá-los.
Aquela declaração de Clarett deixou-me sem palavras, eu não entendia porque ela havia mudado tão repentinamente sua opinião.
Porque não queria ajudar?
Thormann ergueu-se calmamente e colocou algumas moedas no estojo do violino.
---Estou esperando você no Blanchê para o chá, não demore.
Disse ele saindo calmamente do local em direção a cafeteria.
A atmosfera fria da noite em breve tinha produzido o seu efeito habitual a energia mental
tinha cedido espaço à influência e a percepção confusa. Era quase impossível imaginar toda a extensão do meu nervosismo, que vem juntamente com o sentimento de decepção deixando-me bastante inquieto sem ter a menor idéia do que deveria fazer.
---Porque mudou de idéia?
porque não quer ajudar a encontrar quem matou sua amiga?
Perguntei em tom mais áspero quase a gritar.
Clarett chorava em silêncio, sentei-me ao seu lado pois sabia que havia sido muito brusco com minhas palavras.
--- Desculpe.Disse a ela; não tinha a intenção de magoá-la, sei que sente tanto quanto eu a falta de Ninna.
Porém o que ela, entre soluços falou-me deixou-me perplexo e ainda mais confuso.
---Sr Lawford. Se eu identificar o possível assassino de Ninna talvéz também serei morta, pois o homem que trocava palavras ríspidas como nossa amiga Ninna levando-a as lágrimas era o inspetor Thormann.
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