sábado, 23 de setembro de 2017

Delírios da Noite

Salém – 1851 Enquanto dito estas palavras para que sejam escritas por minha irmã, Sandra Elisabeth, sinto-me agraciado por ainda estar vivo para contar, pois a experiência por mim vivenciada jamais sairá de minha memória. E espero que da sua também não. Há um ponto desta narrativa sobre o qual será bom fazer algumas observações, e sentirei uma grande satisfação se minhas reflexões tiverem como resultado, dar um certo crédito aos estranhos acontecimentos aqui contidos. Referindo-me aos insólitos e incomuns episódios que buscam dilucidar os diversos cenários ao qual esta exposta a mente humana, e onde a felicidade não esta, muitas vezes, na lucidez da vida terrena. A convite do amigo Nathaniel Hawthome, escritor e filósofo, fui até Salém (massachussetts) para auxiliá-lo na conclusão de seu romance The Scarlet Letter. Ele era órfão de pai, e criado apenas pela mãe e a governanta, meu amigo tinha uma educação rígida, e um desenvolvido talento para a escrita, permanecendo a maioria do tempo enclausurado em sua biblioteca. Nathaniel fazia parte de um pequeno grupo de famílias ricas de Salém, e fiquei sabendo posteriormente, que os Hawthome exerciam uma certa autoridade sobre os mais pobres que ali moravam, certamente devido grau de pobreza dos habitantes. Iniciando minha jornada em direção a Salém, cavalguei alguns dias pela estrada St. North, e antes de chegar a área mais povoada de Salém, passei pelo vilarejo St. Marie, onde havia em grande cemitério. Ao chegar a pequena vila, fiquei desolado com o estado de pobreza e abandono em que se achava a população. Encontrei ao longo da estrada, crianças que acompanhavam ao lado da montaria, famélicas, semi nuas, que mendigavam restos de comida. Nos casebres, todos de palha, centenas de doentes, abatidos pela febre morriam de inanição, mulheres com vestes esfarrapadas, com crianças no colo, ficavam esquálidas sentadas a porta de suas casas, talvez a espera de um mísero pedaço de pão jogado por algum viajante que por ali passava. O Quadro de miséria era imenso e assustador, a palavra alegria era desconhecida, tão profunda e invariável era a infelicidade humana naquele local. Depois de longa e fatigante viagem, parei para um necessário descanso de alguns minutos, pois eu e minha montaria precisávamos de água para chegar até Salém. Observei com alguma estranheza, que as cabanas da pequena vila, todas em estado demasiadamente miserável, eram rodeadas por cercas feitas com estacas, e nelas, presas com retalhos de trapos, pequenos crânios dececados, parecendo-me ser de algum animal de pequeno porte. Perguntei curioso a um ancião andrajoso e trôpego que se aproximou quando apeei da montaria, a razão de rodear as casas com algum tipo de amuleto tribal. Contou-me ele então, enquanto caminhávamos vagarosamente para a poço que havia no centro do vilarejo, única fonte de água dos habitantes daquele estranho lugar, que os pequenos crânios, colocados em estacas na frente das cabanas, eram de lobos mortos pelos moradores do local, e serviam para afugentar os maus espíritos e as bruxarias. Segundo o longevo morador, durante a noite, todos permanecem trancadas em suas casas, pois espíritos vagam pela região, e em algumas ocasiões, buscam comunicar-se com alguém da família. Após mais algum tempo de viagem, cheguei ao meu destino, a noite estava bastante escura, no céu nenhuma estrela, o vento, com rajadas fortes, varria as ruas desertas, e soava como o uivar de um animal faminto, em busca de sua caça. Mesmo que a noite estivesse apenas começando, as ruas de Salém encontravam-se desertas, e mesmo com a noite sombria, não foi difícil encontrar a casa de Nathaniel, era um belíssimo chalé de madeiras escuras, contrastando com as cabanas cobertas de pobreza que se espalhavam por toda vila. Fui recebido calorosamente pelo anfitrião, e na companhia de sua mãe Salett, jantamos e trocamos boas hilaridades, para que então fosse eu conduzido ao aposento, que esperava trazer descanso a meu corpo extenuado pela viagem, mas infelizmente o tempo não colaborou. Uma forte tempestade de nordeste, fez-se sentir durante toda a noite, e atirou contra minha janela, galhos dos ciprestes que haviam próximos a casa. Sua força era tanta, que cheguei a recear que as janelas romper-se-iam a força dos ventos. Devo dizer que foi uma noite um tanto quanto agitada, onde pouco foi o tempo em que consegui dormir. Na manhã seguinte, a terrível ventania já havia passado, então após degustarmos um café com ovos mexidos e torradas, saímos até a praça central do vilarejo, onde presenciei algo que me fez acreditar que a severidade dos métodos, estão muito além daqueles suportáveis pela raça humana. Na praça localizada no centro do vilarejo, um jovem, creio eu, estar ele nos seus vinte e poucos anos, era chicoteado severamente por um representante do comitê de justiça local, se é que isto pode ser chamado de justiça. Ao perguntar a Nathaniel o motivo, disse-me ele. – Este homem roubou um carneiro, foi pego quando levava o animal para  casa. Todos observavam, como se estivessem a ver um espetáculo, homens e mulheres, algumas delas usando toucas, talvez para esconder o rosto, assistiam ao teatro de horrores que ali era apresentado, sorriam e gritavam enquanto o chicote fazia sangrar as costas do infrator. Mais afastado, um homem com uma vasta capa escura, e chapéu com abas largas, que quase lhe ocultavam o rosto, se fazia presente e reverenciado pelos delirantes expectadores, era o reverendo Pricce, a maior autoridade de Salém. Uma cena por demais bizarra, quando personagens como aqueles, tomavam parte no espetáculo, sabendo não haver risco à autoridade ou à reverência devida a seus cargos e posições, era seguro concluir-se que a execução de uma sentença pública ganharia grave e eficaz significação, mostrando a todos a força da santa igreja e de seus honrados membros. Mas seria ele, realmente merecedor daquelas homenagens tão fervorosas, durante um castigo tão desumano? Não haveria, por acaso, um exagero, em gravar o nome deste homem com a epígrafe dos escolhidos por Deus. A cena não deixava de causar certo horror, como deve ser sempre que se está diante de um julgamento de culpa, vergonha e castigo, infligido a outro ser humano, é uma pena que a sociedade em questão, se tenha deixado corromper suficientemente, a ponto de sorrir, em vez de se arrepiar, diante do que estava vendo. O escárnio dos aldeões, com certeza, seria o castigo maior que as próprias chibatadas que sangravam as costas do penalizado. Permanecemos o restante do dia na biblioteca de Nathaniel, um local onde centenas de livros ficavam dispostos em prateleiras que cobriam as paredes de pedra que rodeavam a sala. Enquanto fazia a leitura de sua obra, que ainda estava inacabada, o jovem escritor contou-me de sua intenção de mudar-se para Boston, e com a influência de sua família, poderia galgar uma carreira política. Com nossa atenção na leitura dos textos, as horas passaram rápido, já era noite quando sua mãe bateu delicadamente a porta, chamando-nos para jantar. O jantar foi primoroso, pato ao molho de laranja, vinho tinto seco e mouse com as frutas do pomar da senhora Salett, e não ouve como evitar sucumbir ao pecado da gula, perante uma refeição tão deliciosa. Em seguida fui direto aos meus aposentos, pois pretendia ter uma serena noite de sono, porém, eu não poderia jamais imaginar o que estava por acontecer comigo, a partir daquela noite. Em poucos minutos adormeci, e em sono profundo, um devaneio invadiu meu subconsciente, nele, estava em um vale repleto de árvores, em uma estrada cercada por grandes acácias, e no final da estrada estava ela, Aurora. Em meu delírio ela retornou, com sua beleza singular e olhos brilhantes como rubi, os ombros cobertos por um fino manto de seda rosa, e um delicioso perfume de jasmim. Mesmo sabendo estar naquele momento, distante da realidade, que era apenas um sonho, era maravilhoso poder estar com minha falecida esposa novamente, mesmo que por breves instantes. Pela estreita trilha que se distanciava cada vez mais por entre as árvores, ela seguia lentamente, como se a me convidar a segui-la, sorrindo a demonstrar uma alegria carinhosa ao ver-me, era um momento quase indescritível. O que até então, nunca passara de mera utopia, agora se materializava diante de meus incrédulos olhos, aquela que por muitas vezes fez meu coração transbordar de felicidade, estava a alguns passos de mim. Mesmo distante, ouvia a meiguice de sua voz. – Senti sua falta Lawford. Dizia-me ela Mesmo sendo uma loucura extrema, gostaria que ela ficasse comigo, era insano de minha parte crer que minha amada esposa poderia voltar dos mortos para falar comigo, mas ali estava ela, bem diante de mim. – Sinto tanta saudade, não acredito no que está acontecendo. Respondi. Havia, porém, períodos em que a cena toda, parecia desaparecer diante de meus olhos, ou ao menos vacilar indistinta à minha frente, feito um amontoado de imagens espectrais delineadas de forma imperfeita. E a imagem foi aos poucos se desfazendo. – Aurora, Aurora, não vá. Implorei aos gritos. Ao escutar-me, Nathaniel foi até meu quarto e abriu vagarosamente a porta, chamou-me, primeiro em voz baixa, e sem fechar a porta, entrou silenciosamente, mas não obteve nenhuma resposta, não consegui pronunciar uma só palavra, ele fechou depois a pesada porta e falou-me num tom mais alto, e ainda mais alto, mas eu estava entorpecido, precisava de algum tempo para dissipar toda a confusão que havia em minha mente. Sentei-me na cama com o coração palpitando de impaciência, comecei a procurar os fósforos e as velas, precisa de luz no ambiente, me sentia perdido, esquecendo por completo a presença de Nathaniel, que segurava um lampião. Lembrava-me vagamente de os ter guardado em qualquer parte, antes de adormecer, deveria ser perfeitamente capaz de me lembrar do local preciso onde os tinha deixado. Mas agora era em vão que me esforçava por me lembrar de qualquer coisa, estava atordoado. Uma inquietação indefinível pesava em meu espírito já um bastante perturbado. Procurei, mas confesso que sem êxito algum, dominar a sensação de temor que me invadia. --- Lawford, esta tudo bem? Perguntou Nathaniel. --- Sim..creio ter passado por um pesadelo, ou sonho. Respondi. Meu corpo e minhas vestes estavam encharcados de suor, sem forças para levantar-me, deixei-me cair na cama novamente, e creio eu, ter adormecido até o amanhecer. No dia seguinte muito pouco foi meu auxílio a Nathaniel, embora seus esforços em levar-me novamente a conhecer Salém, e expressar seu contentamento por ter-me como apreciador de sua obra, mesmo ainda inacabada. Nada afastava de meu pensamento a figura de Aurora, Como se a dizer-me “Estou bem, fique comigo”. Fomos até a paróquia de Pricce, e logo na entrada, uma tela pintada na parede despertou por instantes minha atenção, a imagem de Jesus segurando um coração em suas mãos, chama-se “meu coração divino” e segundo a história, Jesus veio até Margaret Mary, seu coração estava tão cheio de amor, que não podia mais conter as chamas da caridade, e Margaret Mary, tomada pelo amor divinal, suplicou ao senhor que tirasse seu coração, e assim ele o fez, colocando ao lado do seu, até queimar com as chamas da paixão. Após isto, ele o devolveu a Margaret, fechando seu ferimento com o toque de sua abençoada mão. Lembrei-me imediatamente da morte de minha Aurora, quando meus dedos trêmulos de amor, cerraram suas lívidas pálpebras. Recordações que desejo esquecer, mas quando queremos esquecer algo, parece que mais ele se materializa em nossa memória. Tento não pensar a uma época anterior a esta, procuro focar só no que vejo e conheço agora. O passado é um sonho, ou pesadelo, do qual desperto todas as manhãs, e busco conciliar o que sou hoje, ou pelo menos o que sobrou de mim, com o que realmente gostaria de ser. O dia parecia retardar-se a anoitecer, eu poderia estar insano por conjeturar tal possibilidade, mas queria, mesmo na imaginária nuvem dos sonhos, estar mais uma vez com ela. E assim se sucedeu, até que dias e noites tornaram-se iguais para mim, ficava permanentemente em meus aposentos, com a ausência do sono, uma bebida era o caminho para entorpecer meus sentidos, e levar-me mais e mais ao encontro de minha amada. Descuidado com a alimentação, e ingerindo grande quantidade de bebidas, fui tornando-me demasiadamente debilitado, e por vezes, como louco demente, tinha estapafúrdios devaneios, o que fez Nathaniel escrever a minha irmã Sandra Elisabeth, em Black Rivers Falls, solicitando sua presença. Para meu amigo, eu havia enlouquecido completamente. Era extraordinariamente lindo os momentos que passava com Aurora, sentimentos magníficos afloravam a cada momento naquele bosque, como se a muito já estivéssemos lá. A realidade para mim era indesejada, queria eu permanecer naquele divino sonho. Alguns freudianos acreditam que o déjà-vu representa lembranças reprimidas escapando do inconsciente, e que significam um desejo de ter uma segunda chance, de corrigir algo, em algum lugar. Era o que eu tinha naquele momento, uma segunda chance. Quando Sandra Elisabeth chegou a Salém, depois de uma longa viagem, juntamente com o Dr. Hyde, meu estado já era bastante crítico. Mas dentro daquele moribundo corpo estava um coração repleto de sentimentos a muito não experimentados, alegria, felicidade e paixão. Em meus raros momentos lúcidos, relatei os fatos que me levaram a preferir a inebriante inconsistência dos sonhos, do que a fria e melancólica realidade. Talvez na próxima noite, que já se aproxima, possa eu, em definitivo, estar junto com quem mais amei, e amarei, por toda vida.

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