Madri - Espanha - 1904
Lentamente fui colocando meus
poucos objetos dentro de uma caixa.Já estava na hora de ir,talvez para sempre,o
destino é incerto e sempre traz surpresas com ele.
Inevitavelmente devo
levar comigo,além dos objetos,as lembranças,os sorrisos,as
lágrimas,abraços,sonhos,uma abundante bagagem impalpável.Fica para traz um
vazio,a ser preenchido certamente,por alguém.
Vou abrindo gavetas,revirando
papéis,velhas fotografias,cartas declarando sentimentos que agora já
não importam mais,e a pequena lixeira enche-se cada vez mais.
Bem sei que devo levar somente o
indispensável.
Mas o que seria de tão
indispensável para quem sabe que deve sair,mas não sabe ao certo para onde ir?
Talvez deva levar em minha bagagem
bastante coragem,otimismo,a certeza que estou fazendo a coisa certa.Mas isto
não cabe em uma caixa de objetos.
Vou então remexer a lixeira,será
que existe algo ali que eu deveria levar?
Não.Certamente não tem.
Ao findar a partilha do que vai e
do que fica,devo sair em silêncio,sem nada dizer,sem fazer ruído.Não tenho a
quem dizer adeus,saio sem o desconforto da despedida.Observo a caixa com as
poucas coisas que nela coloquei.Vem-me então um riso tímido,tanto tempo,tantos
anos,e nada tenho de valor,nem dentro deste velho apartamento,nem dentro de
mim.
Será que para recomeçar a vida,se é
que isto é possível,terei que juntar retalhos de velhas lembranças?
Pedaços de antigas fotos já
rasgadas? E remontando-as ainda reconhecerei algum rosto?
Terei que montar um quebra cabeças
com minhas emoções,tudo é incerto,mas inevitável.
Vou a janela,uma última olhada.Os
prédios,as pessoas passando rápido no final de tarde,a catedral de Nossa
Senhora de Almudena ao fundo,Madri é uma cidade linda.Um cenário que por longos
anos não teve de mim qualquer atenção,mas agora me faz ficar
imóvel,contemplando-o como pela primeira vez.
Observo o rosto das pessoas que
passam,cada uma delas carrega uma história,distintas ,únicas,mas ao mesmo tempo
interligadas por tristezas,alegrias e superações.
Porque só agora tenho a percepção
destas coisas?
Certamente ao descer as escadas e
sair do edifício,juntar-me-ei a elas,pessoas felizes,pessoas
melancólicas,pessoas como eu,pessoas comuns.
Deveria colocar um agasalho ao
sair?será que faz frio lá fora?
Não importa,é minha alma que está
gelada,uma sombria insignificância.
Quem sabe um dia possa voltar,não
sei.Quando somos crianças queremos crescer,quando estamos velhos queremos
voltar a infância.Tudo culpa deste nosso espírito inconstante,que a
cada minuto muda seus desejos,e nos faz perambular como sonâmbulos despertos
pelos caminhos de nossa existência.
Mas que insano,filosofar em um
momento tão impróprio.Talvez seja o nervosismo.
Tudo,por fim está arrumado,se assim
posso dizer.O meu tudo,que é tão pouco,que se assemelha a quase nada.Uma
ausência preenche minha vida por completo,e a destrói.
Minha amada a muito já se foi,era
seu maior desejo.
Já posso ir,mas detenho-me por
alguns instantes ao chegar a porta,existe uma dúvida que preciso elucidar antes
de girar pela última vez a maçaneta e sair.
Será este,também,meu maior
desejo?